KOMPANHIA
Viagem ao Centro da Terra
1992Causou impacto o original e provocativo espetáculo Viagem ao Centro da Terra, denominada I Expedição Experimental Multimídia por seus autores, que ocupou o então inacabado túnel sob o Rio Pinheiros (SP), hoje em funcionamento e batizado de Jânio Quadros. Quem participava subia e descia escadas íngremes, afundava os pés em lamaçais, caminhava debaixo de goteiras, segurava fios-guia, desafiava a escuridão.
A proposta do diretor Ricardo Karman e do artista multimídia Otávio Donasci, nesta terceira produção da Kompanhia do Centro da Terra, era tirar o espectador do seu contexto habitual para arremessá-lo em uma zona ignorada e de códigos, símbolos e sinais inéditos. Um ambiente de provas inesperadas, no qual o tempo inteiro seria solicitado a participar e tomar decisões, por vezes tocantes e difíceis. O público não vestia mais a pele do mero observador do desígnio artístico. Ao protagonizar a travessia, passava a vivenciar metaforicamente as viagens arquetípicas dos grandes heróis e heroínas, em busca do proibido, inacreditável e desconhecido. Sua experiência se tornava mais enriquecedora e instigante quanto mais intensa fosse a sua interação, que não era compulsória.
No papel de expedicionários, os 55 por sessão encarnavam o alquimista Arne Saknussemm (personagem de Júlio Verne no livro Viagem ao Centro da Terra) , o primeiro homem que teria chegado ao centro da Terra. Após adquirir uma passagem (no lugar de ingresso) numa fictícia agência de turismo, e calçar botas especiais de borracha, eles embarcavam em um ônibus, de janelas vedadas, até a entrada do túnel. A partir daí, mergulhados na galeria subterrânea de um quilômetro de extensão, conectavam-se ao mundo onírico e pouco linear de enredos verbais e não verbais (sensoriais, imagéticos, sonoros e táteis). O roteiro, aliás, configurava uma espécie de "partitura" de narrativas em heterogêneas linguagens e suportes. O recorte verbal derivava de autores importantes da literatura mundial, como Borges, Jung, Dante, Júlio Verne e Guimarães Rosa, entremeado por textos e adaptações dos próprios diretores.
A apreensão e inquietação geral era palpável já nos momentos iniciais. Mal o grupo havia se ambientado ao espaço escuro e uma instalação de pequenos auto-falantes, pendurada a seis metros do teto, ecoava as façanhas daqueles intrépidos e corajosos aventureiros das ficções. Os relatos excitavam a imaginação de cada um. Logo um foco de luz violava o breu e flagrava a estranha estampa de um eremita, dono do saber universal. No centro de uma biblioteca perdida, sentados em pilhas de livros ao redor do fogo, eles ouviam a primeira fábula jamais escrita. Na sequência, em fila indiana, homens de um lado e mulheres de outro, escutavam o canto hipnótico de Beatriz, musa do poema épico A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Perplexos, pegavam de duas velhas um novelo de lã de Ariadne. Enquanto andavam em completa escuridão, mãos invisíveis de corpos nus, que pareciam escapar das paredes do fosso, tocavam os participantes e vice-versa. Subitamente a figura mitológica do midiatauro, uma videocriatura com cabeça de boi e olho-vídeo, irrompia e raptava alguém.
Mais cem metros no coração da Terra e os membros da expedição deparavam-se com o Safe-sex, um conjunto de colunas de plásticos transparentes inflados, habitada por performers nus. Como se fosse um organismo vivo, que instigava ao contato físico, esta floresta de preservativos tinha de ser vencida para a continuidade do processo. Agora acomodados em fardos de feno, atentos à outra lenda narrada pelo eremita, provavam uma estranha e afrodisíaca beberagem proporcionada pelo Libido-sux, um aparelho que coletava o elixir de Eros dos seios de uma divindade e o oferecia para ser apreciado.
Tranquilo até aqui? Não. Escolhidas aleatoriamente por meio de cartas de baralho, treze pessoas rumavam em completa ausência de luminosidade para um corredor onde deveriam enfrentar a Morte. De repente, desnorteadas por um flash que explodia em suas faces, viam-se arrastadas por múltiplas mãos até serem algemadas em um paredão de fuzilamento. Com a cabeça coberta por sacos e abandonadas por vários minutos, ficavam à mercê de seus algozes encapuzados. Os demais, liberados e inertes, apenas contemplavam os assassinatos. Tudo soava real, exceto o revólver que era encostado em suas têmporas.
No instante seguinte, anjos de algum paraíso as libertavam e lá estava uma velha balançando a cabeça de uma medusa-vídeo. Ao peregrinar por um cemitério povoado de lápides de televisões inanimadas, a turma se assombrava com a presença de um querubim suspenso no alto. Inspirada em um conto de Borges, a entidade ensinava que “o espelho e cópula eram abomináveis porque ambos reproduziam os homens”. Afoito, um solitário cangaceiro se esgueirava entre as sombras, desfiando um trecho do romance Grande Sertão: Veredas. Novamente todos escutavam narrações de jornadas e sagas fantásticas.
Um temível cavalo a galope, cavalgado por uma videocriatura com rosto de caveira, invadia o fosso e investia contra os presentes, obrigados a escapulir por onde fosse possível. Mais uma vez aparecia o eremita, mas agora com a imagem aprisionada em um televisor. Midializado, se transformara em um simulacro de si mesmo. Espantados, os exploradores percebiam, adiante, estar outra vez no prelúdio da viagem, na mesma agência de turismo onde tudo teve início. Chegavam modificados, engrandecidos pelo conhecimento acumulado ao longo da trajetória. Taças de vinho eram servidas, para celebrar a coragem daqueles que compartilharam de uma vivência extraordinária.
O trabalho demorou dois anos para ser colocado de pé. Não bastasse as dimensões do túnel, a construtora que à época o administrava impôs inúmeros embaraços. As garantias de acessibilidade, segurança e salubridade, corretamente exigidas pelo poder público, foram cumpridas à risca. Escadas de emergência e elevadores tiveram que ser instalados – por um deles descia o cavalo. Uma ambulância permanecia em vigília e três paramédicos acompanhavam o percurso. Icônico no cenário teatral brasileiro na década de 1990, a montagem mereceu reportagens de destaque na mídia nacional e em veículos internacionais, como a Time Magazine (EUA) e Corriere dela Sera (Itália).