KOMPANHIA
OVONO
2016crítica Fernando Pivotto | Aplauso Brasil
Gênero não muito comum no teatro, a ficção científica criada pelo diretor Ricardo Karman continha aspectos visionários. Em registro irônico, se inspirava na corrida espacial dos anos 1960 e 1970, no mítico longa-metragem 2001 - Uma Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick, 1968) e no livro bíblico Gênesis. O texto sinalizava uma utopia que, de certa forma, não se concretizou. Se no passado havia um sentimento de orgulho da inteligência humana, das conquistas tecnológicas e da exploração espacial, meio século depois o destino imaginado se revelou um modelo de desenvolvimento insustentável.
Nesta parábola, montada no Centro Cultural Banco do Brasil (SP), o osso que havia sido arremessado para o alto pelo macaco do filme, numa alusão a um amanhã promissor da humanidade, retornava e ameaçava causar graves estragos no planeta. Efetivamente, os avanços concretos que potencializaram a autoestima do homem acabaram não trazendo o ansiado upgrade civilizatório.
O espetáculo tinha como espinha dorsal forjar uma reflexão bem humorada sobre essa degeneração das expectativas. Dois conflitos dramáticos duelavam no palco. Um deles fazia a apologia do progresso, queria manter o osso flutuando no espaço e acreditava na evolução permanente dos mortais. O outro negava que o gênero humano conseguiria derrotar seus problemas e apostava na queda do objeto.
Ovono, nome do computador que batiza a peça e inverte a expressão “o novo”, é uma inteligência artificial que endossa a primeira corrente de pensamento. No entanto, diferentemente da máquina HAL 9000 da nave de Kubrick, este cérebro cada vez mais pensante e com sentimentos humanos, adquiriu fé naquela estrutura lançada pelo chimpanzé. O osso seria o seu “pai”, a razão única de sua existência. Ele não acreditava que aquilo que estava em rota de colisão com a Terra pudesse mesmo destruí-la.
A complexidade do trabalho devia-se ao fato de a ação acontecer dentro de uma enorme esfera inflável transparente, mantida por insufladores de ar permanentemente ligados, que ocupava todo o nicho cênico e abrigava em seu interior uma calota semi-esférica com retroprojeção. O fundo côncavo do globo servia de suporte para os vídeo-projeções que ambientavam as cenas.
Esta bolha transparente dava a dimensão futurista da história e incrementava esteticamente a encenação. Só foi possível materializá-la após a transposição de um sem número de dificuldades técnicas. Os atores, por sua vez, precisaram dublar e contracenar com personagens-vídeo, desenvolvidos e animados eletronicamente que ganhavam vida ao serem projetados na referida calota. A coordenação das mídias - som, luz e os diversos projetores de video - era efetuada por um sofisticado equipamento utilizado só em grandes eventos e shows de rock da época. Criava-se assim uma dinâmica cênica que entrelaçava o real e o virtual, uma das marcas registradas da Kompanhia do Centro da Terra.
A obra não se perdia em discussões e digressões científicas. O roteiro transcorria de maneira simples, regado a forte teatralidade. Curiosamente, antecipava um futuro que vingaria alguns anos depois. Se no enredo uma personagem sofria modificação genética, nos tempos da pandemia de coronavirus circulou suposições de que o vírus da covid-19 teria sido cientificamente adulterado. O script também prenunciava os terraplanistas contemporâneos, personificados logo no início em um mosaico de imagens da terra plana. Havia, ainda, a figura de um Messias, defensor do “regressismo", movimento filosófico de sua autoria espelhada na expressão "ordem e regresso” da bandeira nacional. Alguém pensou em Bolsonaro?
Três singularidades norteavam a trama: manipulação genética, nanotecnologia e inteligência artificial. A primeira era representada por uma criança amputada do seu instinto de auto preservação, o que a estigmatizava como uma terrorista perfeita. A segunda existia figurativamente em uma mini bomba atômica de fácil transporte e esconderijo. Por fim, a terceira tinha Ovono como símbolo. Na última sequência o mundo estava em processo de decomposição. Em surpreendente efeito teatral, a bolha inflável se enchia de fumaça e explodia, desabando sobre a plateia. A distopia se concretizava. O elenco não voltava para os aplausos finais. Aturdido, o público parecia abandonado à própria sorte.
FICHA TÉCNICA
Texto e direção geral: Ricardo Karman
Diretor de animação e vídeo: Amir Admoni
Diretor de projeto multimídia: Tito Sabatini
Elenco: Gustavo Vaz, Paula Arruda, Paula Spinelli, Fábio Herford, Bruno Ribeiro e César Brasil
Participação/vídeos: Lulu Pavarin, Vivian Bertocco, Beatriz Bianco e Vivian Vineyard
Assistência de direção: Bernardo Galegale
Figurino: José de Anchieta
Iluminação: Domingos Quintiliano
Cenografia: Ricardo Karman
Dramaturgista: Rui Condeixa Xavier
Projeto e consultoria de inflável: Otávio Donasci
Consultor de imagem: Hugo Mendes e Damian Campos
Equipe de suporte de projeção: Angelo Bag, Damian Campos e Hugo Rodrigues
Trilha sonora: Raul Teixeira e Rodrigo Florentino
Operação de som: Rodrigo Florientino
Operação de luz e vídeo: Leonardo Patrevita
Animação: Amir Admoni e Fabrício Melo
Rigging / verme: Leonardo Cadaval
Animação verme: Diego Souza
Videorreportagem: César Brasil
Assistente de iluminação para montagem: Marcos Rogério Fávero e Vinícius Requena
Adereços: Marcela Donato, Paulo Galvão, Josué Torres
Consultoria visagismo: Duda Marcondes
Contrarregra: César Brasil, Bruno Ribeiro e Moises Saron Lopes
Costureira: Lande Figurinos
Confecção de inflável: Juanito Cusicanki
Fabricação da calota: Marcelo Carlos da Macplast
Coordenação de produção e produção executiva: Vivian Vineyard
Administração: Norma Lyds e Emerson Mostacco
Projeto gráfico: Keren Ora Karman
Fotografia: Leekyung Kim
Assessoria de imprensa: Verbena Comunicação
Idealização: Kompanhia do Centro da Terra
Realização: Centro Cultural Banco do Brasil
Patrocínio: Banco do Brasil
Copatrocínio: Sabesp