KOMPANHIA
525 Linhas
1989O espetáculo, que estreou no icônico reduto paulistano Aeroanta, tinha uma beleza imperfeita, como escreveu na ocasião o crítico de teatro Jefferson Del Rios. A primeira peça do escritor Marcelo Rubens Paiva, de registro experimental, entremeava realidade e ficção, por meio de um triângulo amoroso. Casada, a modelo Stella se apaixonou por outro homem e, em algum momento, entrou em conflito com o simulacro que a publicidade fabricara de si mesma. Isso porque sua figura virtual ganhou existência própria e passou a disputar com a protagonista a atenção dos indivíduos que a cercavam.
Ao farejar para aonde apontava os tempos contemporâneos, o autor iluminava com tintas irônicas a avalanche de informações, fragmentada e veloz, a que a sociedade estava submetida pela força da televisão e da publicidade. O tema em foco era o papel da mídia na indução dos desejos e sonhos das pessoas, especialmente em um período marcado por um narcisismo à flor da pele. O título se referia aos 525 traços de luz que compunham, à época, o padrão televisivo.
Foi a primeira montagem da Kompanhia Teatro Multimídia de São Paulo (hoje Kompanhia do Centro da Terra), dirigida por Ricardo Karman, também coautor do texto, uma obra que combinava projeção de imagens, recursos de multimídia e a presença viva de intérpretes. Ali começava a estética de combinação de linguagens que marcaria a trajetória do diretor e do grupo. Um dos parceiros de trabalho, o artista multimídia Otávio Donasci, com quem realizaria diversas produções nos anos seguintes, transpôs para a cena experimentações inéditas no Brasil. Ou seja, seres-imagens que contracenavam com atores ao vivo.
O uso de personagens alegóricos produzia passagens surreais. Stella estava representada em dois planos, que se contrastavam. No palco, avultava o perfil franzino da atriz que a representava. Na tela, sobressaía uma mulher glamurosa, espécie de holografia artesanal, quase palpável. Por aplicação desse recurso no espetáculo, denominado Video-Vivo, Donasci ganhou um prêmio especial de arte multimídia – ele também é inventor das vídeo-criaturas, em que o rosto do ator é substituído por um tubo de vídeo, expandindo as fonteiras entre a realidade e a imagem gravada.
Como o palco do Aeroanta também abrigava shows musicais, todo o aparato cenográfico tinha de ser montado e desmontado em cada sessão por Karman, elenco e técnicos. Uma parafernália composta de doze monitores de vídeo, holofotes, mesa de som e um enorme projetor de vídeo da Sony – foi, possivelmente, o primeiro espetáculo teatral brasileiro a empregar o equipamento no palco. A cenografia, de Márcio Tadeu, era formada por assemblages compactos de objetos cênicos como, por exemplo, carrinhos cubistas que cumpriam diversas funções, desde sugerir um quarto de dormir, um laboratório de pesquisa e uma portaria. Retirados com o cuidado de não encalhar nos estreitos oitenta e cinco centímetros disponíveis para entrar e sair de cena.
525 Linhas transpôs para o teatro de forma pioneira uma poderosa reflexão sobre os impactos psíquicos da mídia na era pós-moderna, que moldavam as estruturas de sentimentos dos seres humanos. O encenador se valeu de uma plataforma multimídia para enfatizar como a crescente intromissão no dia a dia das novas mídias colonizavam a mente e a imaginação humanas.